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Jornada dos vivos pela terra dos mortos

  • Caroline Brito
  • 15 de set. de 2016
  • 3 min de leitura




Ruas planejadas, quase toda a área formando um xadrez equilibrado. O perímetro é atravessado por uma avenida central, mais alargada, que divide e orienta os passantes em seus percursos. Conforme dela nos afastamos, encontramos vielas estreitas, apenas aparentemente menos relevantes no cenário local. Sim, pois entre elas, quem poderia dizer, corre-se o risco de esbarrar, de súbito, com figuras verdadeiramente ilustres, amadas ou odiadas, quiçá internacionalmente famosas.


Um local tão reconhecidamente turístico só poderia mesmo ter um histórico de acolhida de pessoas importantes. Mas anônimos também são vistos ali, embora não escondam suas origens, o mais das vezes, abastadas. E são justamente os encontros, mais que a de fruição da arte e a infinitude de monumentos amontoados e esculpidos, que dão vazão às marchas e vaivéns locais.


Apesar dos fluxos intensos que recebe todos os dias, um fato curioso ocorre, vez por outra, durante a visita: perdidos entre tantas ruelas, sem saber ao certo para onde ir e o que observar, eis que nos encontramos sozinhos, tomados por um silêncio que segundos antes não existia, como se todos os visitantes, repentinamente, tivessem decidido deixar o lugar. Cruzes! A súbita solidão faz apertar os passos, e não demora até que encontremos alma viva. Respiramos, mas não muito profundo. A densidade do ar só permite encher metade dos pulmões.


Em contraste com os vazios perturbadores, deparamo-nos frequentemente com as multidões reunidas. As hordas turísticas, aqui reverenciosas e estranhamente sossegadas, fazem-se acompanhar de guias especializados. Sempre as odiamos, porém, por vezes, juntamo-nos a elas e aumentamos suas almas-grupo. Anônimos, na face amorfa das massas, perseguimos, como quase todos, alguma nova revelação, uma história que traga à superfície as profundezas dos monumentos e construções, nem todos tão elegantes assim. Onde há tanto ecletismo, o gosto pode confundir-se com mau gosto. Com belas ou menores obras, há que se homenagear esses artistas por terem deixado mais que as impressões de seus espíritos em seus trabalhos. Deixaram também suas homenagens e respeitos àqueles que vão eternamente ao lugar.

Atmosferas carregadas pelos odores do passado, onde monumentos dão rasto das histórias que ali jazem, em locais como esses sentimos a pesada mão do tempo tocar nossos ombros. Viajantes, em busca de recordações, convertem um tal lugar de memória em lugar de viagem, lugar de estada em lugar de passagem. Não há suvenires. Deixa-se flores, mão não se leva um punhado de terra. É o próprio lugar que traz a promessa de fazer lembrar.


Em favor da narrativa, há que se desenterrar alguns segredos e sepultar tantos outros. Eis uma ambiguidade desses atrativos turísticos. Fosse apenas urbano, fosse apenas aquilo que é, vivo e pulsante, ocuparia, em nossa imaginação, uma condição dantesca. Mas é também turístico. E isso faz suas tragédias menos trágicas, sua mística menos misteriosa, sua vida mais História, sua morte um espetáculo.­­


No entanto, se no turismo a vida tem de ser palatável, isso se dá no limite em que nos descobrimos sós, um lapso temporal em que toda a parafernália turística desaparece, pois recordamos onde estamos. Nesse mísero instante, a imaginação poderosa sussurra: “talvez não estejamos sozinhos, os cemitérios são sempre habitados”. Resta-nos em assombro, afoitos, em passos largos, enquanto compreendemos que vida e morte não se separam. A despeito da indústria, a vida pulsa, e subverte, e é subvertida. No Cemitério da Recoleta, as experiências se encontram. Em um lugar onde esperamos ver a morte, olhos apreensivos buscam e temem o encontro com a vida.


De fato, as narrativas em que estamos imersos, inspiradas, simultaneamente, pelo mundo oculto e pela luz científica, enredam-nos em experiências ambíguas, supostamente paradoxais, nas quais somos, por vezes, senhores, por vezes, escravos, mas sempre complexos. Se quisermos, podemos procurar nessa complexidade o mistério iniciático do último enigma da esfinge. Nele reside latente também um fio de esperança. Afinal de contas, para onde vamos? É a morte apenas uma viagem?



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