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De deserto, de viagem, de afeto: notas abreviadas sobre O Céu que nos Protege

  • Julia Castro
  • 16 de set. de 2016
  • 3 min de leitura

Quando encontro alguma imagem do deserto do Saara me sinto desafiada. A princípio, meu olhar acomodado é pretensioso e anseia por enquadrar paisagens em limitados sistemas de classificação de lugares. Mas logo ele é deslocado. Afinal, aqueles amplos espaços de dunas que se locomovem continuamente com o vento variando em amarelados, beges e marrons, ora no mais pleno dia ensolarado, ora em intensas noites de ventania, nos trazem a ideia de que o tempo é infinito e o espaço um continuum sem bordas. Aquelas fileiras de camelos que partem de qualquer parte para outras direções, homens cobertos e misteriosos com pele morena que é fosca e também iluminada por micropartículas de areia cintilantes, a voz feminina que canta algo absolutamente desviado da harmonia à qual estamos acostumados na música ocidental pasteurizada de rádio, enfim, o Saara está em uma dimensão senão paralela, a um passo da nossa dimensão urbano-ocidental.


Temos por aqui, no Brasil, um imenso sertão que é quase um deserto. Embora seja um espaço que em nosso imaginário social tem identidade próxima à do Saara, em função da construção social que historicamente o qualificou como espaço desconhecido, selvagem e inabitado, o sertão e o Saara são primos muito distantes. A mítica que os envolve é muito diversa.


O Saara é como um deserto original que faz parte de nosso imaginário desde crianças, quando temos notícias de histórias das Mil e Uma Noites que acabam se transformando no decorrer da vida em outras histórias com as quais tomamos contato, algumas mais erotizadas e emocionantes de romances como Tuareg. Uma história sensível que evidencia a nossa relação com o deserto e, por consequência, com o Oriente, foi filmada por Bernardo Bertolucci em 1990 e recebeu o nome de O Céu que nos Protege (The Sheltering Sky), obra baseada no romance autobiográfico de Paul Bowles, publicado em 1949.

Protagonizado por Kit e Port, um casal de escritores americanos interpretados por Debora Winger e John Malkovich, o filme recorre a alguns clichês da representação do turismo e da viagem, seja enfatizando o uso do dinheiro enquanto principal e único mediador das trocas interculturais entre os personagens, substituindo inclusive a comunicação oral, ou com cenas que se passam em hotéis e pensões, restaurantes e cafés. Famoso diálogo do casal é aquele em que Port recorre à comum diferenciação entre turista e viajante ao dizer que para o viajante não existem planos para a viagem, algo como o plano é não ter plano.


Essa história de viagem de americanos se aventurando pelo Norte da África é comovente pois toca em alguns limites da relação com os lugares e das relações amorosas de modo necessariamente inseparável. É a beleza do enredo. A mobilidade dos personagens por cidades com a aura de exotismo buscando experiências autênticas, margeia os ícones do imaginário do Oriente, que há tantos séculos nutrem o imaginário das sociedades ocidentais − em alguma medida, também das sociedades pós-coloniais – ao mesmo tempo em que caminha pelos meandros das relações amorosas. Kit e Port estão vivendo uma crise, talvez mais uma crise de relacionamento temperada pelo amigo do casal que forma um triângulo amoroso.


É um dos filmes com os quais mantenho uma relação afetiva. É tocante pois a fotografia e a trilha sonora são belíssimas e o convite é de uma viagem de destituição de alicerces pessoais, desde o trajeto da personagem Kit que experimenta a passagem do conforto de turista norte americana para o acolhimento inesperado por uma comunidade nômade do deserto, até a experiência de morte após uma febre repentina de Port, representado por John Malkovich.

Filmado na década de 1990, o filme hoje me parece nostálgico, mas de uma nostalgia reconfortante que convida a recriar possibilidades de experimentar o desconhecido; um convite cada vez mais necessário nesses tempos em que tudo é exageradamente conectado por meios de comunicação, demasiadamente fotografado e pretensamente controlado, inclusive no âmbito das vivências amorosas.

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