O prazo de validade de certas viagens
- Humberto Fois-Braga
- 30 de set. de 2016
- 5 min de leitura

Nesta quarta-feira (10/12/2008), na Rede Globo, teve a exibição do segundo capítulo da minissérie "Capitu", que faz parte do Projeto Quadrante, desenvolvido pelo diretor Luiz Fernando Carvalho. A produção é uma adaptação do clássico livro de Machado de Assis, Dom Casmurro.
E, como todos (ou quase todos) sabem, o livro narra a história de Bentinho (Dom Casmurro) que foi mandado ao seminário para pagar uma promessa de sua mãe e, assim, conheceu Escobar, seu melhor amigo. Após este período de estudos, ele se casa com Capitu (sua amiga de infância), com quem terá um filho - e aqui se encontra o grande enigma da literatura brasileira: o filho é de Bentinho ou de Escobar? Capitu traiu ou não?
Dúvidas a parte, o que me chamou a atenção, ontem, ao assistir a minissérie, foi a conversa entre Bentinho e José Dias (o agregado da família, como está narrado nos capítulos IV "Um dever amaríssimo" e V "O agregado", no livro).
Buscando encontrar aliados para enfrentar sua mãe que insiste em querer enviá-lo ao seminário para ser padre, Bentinho busca refúgios em José Dias, em uma tarde de caminhada pelo Passeio Público do Rio de Janeiro. É lá que ele argumentará com o agregado da família, tentando cooptá-lo e convencê-lo de que o seminário não seria uma boa opção.
Mas, a cena que me interessa é aquela em que José Dias resolve ajudá-lo, vislumbrando com isto uma oportunidade de voltar à Europa. Esta passagem está representada no Capítulo XXVI - "As Leis são Belas", bem como no Capítulo XVIII - "Na Rua".
Vale à pena ler fragmentos deste trecho:
José Dias falando à Bentinho: "[...] Não blasfeme. Deus é dono de tudo; ele é, só por si, a terra e o céu, o passado, o presente e o futuro. Peça-lhe a sua felicidade, que eu não faço outra coisa... Uma vez que você não pode ser padre, e prefere as leis... As leis são belas, sem desfazer na teologia, que é melhor que tudo, como a vida eclesiástica é a mais santa. Por que não há de ir estudar leis fora daqui? Melhor é logo para alguma universidade, e ao mesmo tempo que estuda, viaja. Podemos ir juntos: veremos as terras estrangeiras, ouviremos inglês, francês, italiano, espanhol russo e até sueco. Dona Glória provavelmente não poderá acompanhá-lo; ainda que possa e vá, não quererá guiar os negócios, papéis, matrículas, e cuidar de hospedarias, e andar com você de um lado para outro... Oh! As leis são belíssimas! [...]

Levantou a perna fez uma pirueta. Uma das suas ambições era tornar à Europa, falava dela muitas vezes, sem acabar de tentar minha mãe nem tio Cosme, por mais que louvasse os ares e as belezas... Não contava com estas possibilidades de ir comigo, e lá ficar durante a eternidade dos meus estudos.
- Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo! [...]
José Dias ia tão contente que trocou o homem dos momentos graves, como era na rua, pelo homem dobradiço e inquieto. Mexia-se todo, falava de tudo, fazia-me parar a cada passo diante de um mostrador ou de um cartaz de teatro. Contava-me o enredo de algumas peças, recitava monólogos em verso. Fez os recados todos, pagou as contas, recebeu aluguéis de casa; para si comprou um vigésimo de loteria. Afinal, o homem teso rendeu o flexível, e passou a falar pausado, com superlativos. Não vi que a mudança era natural; temi que houvesse mudado a resolução assentada, e entrei a tratá-lo com palavras e gestos carinhos, até entrarmos no ônibus".
É interessante observar como uma viagem inesquecível pode, com o tempo, desenvolver uma sensação de nostalgia e angústia. Nostalgia porque são lembranças de uma época, de um momento importante; e angústia porque existe também o desespero e o medo de nunca mais poder repetir este passeio: seja porque o destino ficou inalcançável (financeiramente, por exemplo) ou porque as memórias daquela primeira viagem sempre virão maquiadas com uma visão distante que torna tudo mais colorido, alegre e melhor do que realmente foi.
Ora, esta viagem inesquecível que transborda de experiências e inunda o viajante de status ("eu já fui, eu sei como é"; "ninguém me contou, eu experimentei"), no caso de José Dias, está vinculada com uma Europa e a sua idéia de sofisticação e moda ("le dernier cri de Paris"). E, como o próprio nome designa, moda passa, muda, se transforma, então há a necessidade (às vezes neurótica) de se estar sempre atualizado com as tendências. Viagens antigas que não se repetem guardam o seu glamour, mas são inúteis para o prestígio eterno, já que o tempo passa e aquele viajante das antigas já não estará mais em sintonia com as modas lançadas por estas terras para onde todo mundo olha e copia. Enfim, a viagem de muito tempo se transforma em decadência para o viajante, já que vem associada com sua incapacidade de repetí-la.
Neste sentido, o que José Dias sofreu foi um desespero mesclado com esperanças...um entusiasmo na oportunidade de reviver e se atualizar com o mundo que dita costumes. A esta esperança ele se apegou e buscou lutar para sua realização: era a sua oportunidade de estar na moda, no "olho do furacão" e, novamente, se banhar no status que a viagem lhe proporcionaria (ou melhor, devolveria, já que ele já o teve uma vez e o perdeu).
A minissérie "Capitu" conseguiu, acredito, captar muito bem esta nostalgia e esperança do retorno ao "destino amado". Para quem puder, vale a pena conferir as cenas "No Passeio Público" e "As Leis são Belas": "Ah, você não imagina o que é a Europa, Bentinho!" A felicidade na possibilidade de se repetir uma viagem à Europa - é esta a alegria de José Dias.
E as imagens de antigos vídeos, monstrando uma Europa clássica, dão uma contextualização importante à cena, pois apresenta o imaginário do Velho Continente que permeia a mente de José Dias: zeppelin, cafés, ruas modernas e movimentadas, patinação no gelo e Torre Eiffel.
E José Dias ainda diz: "Ao mesmo tempo que estuda, viaja! Podemos ir juntos, veremos terras estrangeiras...". Assim, enquanto o agregado se recicla em suas experiências européias, Bentinho as vive pela primeira vez e, no futuro, ele poderá também ser o José Dias, o nostálgico que quer reviver sua antiga experiência de viagem.
Bom, ao meu ver, as atuais experiências de intercâmbio (que sempre vêm justificadas pelo discurso de "adquirir novas experiências") parecem representar este desejo de status do viajante, que pode se transformar em nostalgia quando o tempo passa e o afasta daquela viagem primeira. Pouco a pouco, parece que a viagem vai perdendo a sua validade, e vem o receio de não estar mais atualizado com aquele mundo visitado (ainda se fala aquela gíria? aquela loja ainda está na esquina daquelas ruas?). Enfim, nestes casos, tudo leva a crer que a angústia e o medo de um "não-retorno", a impossibilidade de uma "re-visita", podem causar desesperos, já que nada pode ficar velho, e toda experiência tem que ser sempre nova e eterna.
(Repost: artigo inicialmente publicado no extinto blog "Sobre Raízes e Asas", em 12 de dezembro de 2008).
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